Vagabunda tarde
 



Cronicas

Vagabunda tarde

Sônia Coppini



Vagabunda tarde


Entregou-se inteiramente àquela tarde. À preguiça infinita da tarde. Começou insipiente pela manhã, mas com o passar das horas tudo foi se revolvendo, se tornando lento, já não fazia sentido a pressa.
Quando levantou, lembra de ter olhado o relógio, afinal, conferir se valeria a pena sair do sonho para mergulhar na realidade. Esta consistia em enfrentar uma pia cheia de louças do dia anterior, o que, corajosamente, enfrentou. Depois, uma cesta de roupas, algumas para serem ensaboados no tanque, outras, abandonadas à própria sorte na máquina de lavar. E também a bacia das máscaras. Água, sabão e a presteza em esfregar cada uma, com o compromisso de eliminar qualquer vestígio de organismos indesejáveis e letais. Função que, no início, fazia com certo prazer, mas se transformou em sacrifício crescente, como as dezenas de sacolas plásticas, higienizadas uma a uma, enxaguadas, sacudidas, estendidas ao sol, quando havia sol, enfileiradas no secador, e os pingos a cair, primeiro um, depois vários, e uma enxurrada de pingos a encharcar o piso, e haja pano seco para evitar algum acidente doméstico, um escorregão e a saída em busca de socorro. Isto, nem pensar! Usar todos os panos e enxaguar e torcer e estender e não reclamar de nada, estava tudo bem. Como a entrega do mercado à domicílio. Uma beleza. Cada produto borrifado a setenta graus, a embalagem da batatinha, do chocolate, das carnes, o cheiro inebriante de álcool às dez da manhã. Começando o dia no porre. E depois o ritual do almoço, lava a casca, tira a casca, lava de novo, frita, suja a panela, faz o arroz, a embalagem recendendo aroma etílico, e mais louça, e mais lavação, e o gel nas mãos, para não restar qualquer dúvida. E foi a última vez que olhou para o relógio.
Entregou-se à tarde como verdadeira vagabunda. Pressa pra quê? Olhou a gata preguiçosa, entre um cochilo e outro, atenta ao alarido dos periquitos; o som do verdureiro passando pela rua, com o anúncio dos produtos, o afiador de facas, com sua gaitinha de boca, o sorveteiro, com a corneta desafinada. Ninguém na rua a passear, nem ela. Mas havia o prazer de atirar-se na cama com o chocolate, fazer um cafuné no bicho de estimação, olhar o movimento das nuvens pela janela, o tempo escoando como sempre escoou, as folhas de outono voando numa dança sensual. O prazer de enxergar o tempo. E não aprisionar-se a ele. Nada a lavar. Apenas a alma querendo mergulhar de novo: da realidade para o sonho.

 

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